Tuesday 17 June 2014

A obra de arte na era da desilusão

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A obra de arte na era da desilusão

"Nesta nova era, as máquinas reduzem o esforço físico extenuante do trabalho humano e a reprodução fotográfica e cinematográfica introduz novos vetores, potencialmente lúdicos e liberadores", escreve Kathrin Rosenfield, escritora e professora de Filosofia e Literatura na UFRGS, em artigo publicado pelo jornal Zero Hora, 15-06-2014.
Eis o artigo.
Nova edição de ensaio clássico de Benjamin inclui texto em que Adorno coloca em xeque os argumentos do amigo a favor da massificação da arte.
Em abril, saiu mais uma reedição de A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (org. M. Seligmann, trad. G. Valladão Silva, L&PM, 2014). Em um primeiro momento, não se pode evitar o pensamento: “Ah não, aquilo de novo!!??”. Mas este volume prefaciado por Marcio Seligmann-Silva oferece um conjunto fascinante e com capacidade de instigar o debate hoje. Apresenta, além do texto de 45 páginas, todos os fragmentos e variantes das diferentes edições, uma introdução biográfica e conceitual (de Seligmann), além de uma longa carta de Adorno que submete o ensaio do amigo a uma severa (para não dizer demolidora) crítica, e reflexões posteriores de Benjamin sobre a visão (bem mais assombrosa) de Carl Schmitt à respeito da técnica.
Esses reflexos críticos do próprio Benjamin e de Adorno constituem um contrapeso instigante ao entusiasmo inicial do ensaio e de sua recepção. Ainda hoje, há um atrativo contagioso nas promessas emancipatórias que Benjamin atribuía à aliança da tecnologia com a arte. O ceticismo de Adorno é um antídoto necessário para essas esperanças, como também para as das duas décadas passadas, que apostavam no potencial democratizante das mídias virtuais. Ambas fases da técnica sofreram revezes idênticos. Não é um acaso, portanto, que Benjamin, três ou quatro anos após a publicação do ensaio, iria lembrar-se das advertências de Carl Schmitt – cujos escritos de 1929 prognosticaram a “dominação monstruosa” dos meios técnicos. A técnica, escreve Schmitt, tanto pode “servir à liberdade [como] à opressão”. Entre 1938 e 1940, Benjamin copia as palavras desiludidas do grande jurista das leis de Nuremberg: “Dos princípios da técnica não resulta nem um questionamento político, nem uma resposta política.” (L&PM, pág. 144)
Eis os amargos segundos pensamentos que se seguem à tese sobre alcance “popular”, liberador e potencialmente revolucionário da técnica que viabiliza a (re)produção em massa da arte. É bem conhecida esta tese, que prognostica a autodissolução dialética do mito e da “aura” mágica atribuída às obras de arte sob o signo do “desencantamento” da arte. Ao longo do tempo, as obras auráticas funcionavam como emblemas dos rituais mágico-religiosos e dos seus derivados. Elas refletiam o prestígio dos sacerdotes e das famílias poderosas. Os cultos (e os artefatos da “primeira técnica” pré-mecânica) conferiam estatuto divino aos antepassados, um “valor de culto” cujos resíduos auráticos se conservam na arte burguesa.
São esses elementos culturais que começam a sofrer um sério abalo, no entender de Benjamin, quando se inicia a era da segunda técnica, que está sob o signo da fotografia e do cinema.
Nesta nova era, as máquinas reduzem o esforço físico extenuante do trabalho humano e a reprodução fotográfica e cinematográfica introduz novos vetores, potencialmente lúdicos e liberadores. Reproduzir obras para as massas reduz a distância e dessacraliza o objeto de arte, diminuindo seu valor de culto, ao mesmo tempo que sua difusão reorienta o gosto, abalando os cânones e hierarquias de valor estabelecidos. Além de diminuir a aura, a técnica familiarizaria as massas com o potencial crítico da arte. Benjamin confere às massas o papel de experts, juízes e agentes de controle da produção artística; além disto, o autor saúda também a dispersão (divertimento) da produção industrial como agente da “desauratização”, e salienta que o riso desempenharia uma função catártica, dando vazão a tensões patológicas que ameaçam a sociedade por dentro.
Adorno é rápido em reagir às ideias do amigo; suas “breves observações” (que ocupam 10 páginas!) começam com elogios entusiásticos do “ensaio extraordinário”, no qual não haveria “nenhuma frase sequer que eu não desejasse discutir exaustivamente com o senhor.” O que se segue, entretanto, é uma severa crítica que põe em questão quase todos os argumentos e a própria perspectiva (redentora e utópica) de Benjamin. O maior peso da crítica diz respeito à falta de uma análise adequada do sujeito desta operação redentora: Benjamin vê as “massas” (ou “o proletariado”) à espera de liberação graças às novas formas de arte; mesmo assim, ele atribui a elas uma consciência que superou os entraves da sociedade burguesa; Adorno, ao contrário, duvida que as massas possam, de imediato, ser experts capazes de julgar e críticos aptos a exercer o controle da produção cultural.
Conhecemos bem hoje essa ideia das instâncias coletivas de controle e dos comitês democráticos cujo consenso pluralista dispensaria a difícil questão do juízo de valor. Ela tende a transformar-se no clichê e no autoengano das instituições de ensino, mas não só delas. Para Adorno, esse descaminho da tese benjaminiana é o principal alvo das críticas – críticas essas que podem ter o ar do “censor”, como observou Bruno Tackels, porém mostram o faro político do jovem filósofo. Ele viu (e suprimiu) as mais extravagantes utopias de Benjamin – por exemplo, a afirmação de que sua teoria seria “inutilizável” para o fascismo e os regimes autoritários. A ideia talvez fizesse sentido para as esquerdas em 1935, quando artistas e intelectuais apostavam na União Soviética como o “farol brilhante para o qual a civilização mundial deve convergir e lutar” – como escrevia Karl Radek na revista Contra-Ataque, publicada em Praga e Paris.
Um ano depois, quando o artigo de Benjamin sai publicado na revista do Instituto de Pesquisas Sociais, os processos de Moscou já começaram a esmagar muitos dos artistas que trabalharam para ideais do tipo benjaminiano – o próprioRadek sucumbirá ao “processo dos 17”, em 1937. É esta tela de fundo que torna fascinante a reedição deste ensaio seminal, que está à espera de contrapontos – por exemplo, os ensaios de Robert Musil, que já mostrava em 1935 a convergência do aparelhamento totalitário da arte pelas tecnologias propagandísticas – tanto na União Soviética como na Alemanha fascista.

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