Friday 17 November 2017

Herdemos Clarice

Herdemos ClariceA escritora Clarice Lispector (Foto Acervo Revista Manchete)
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Tive dois encontros com Clarice Lispector; dois, com o que se chama seu corpo, esse que escapa, mas que a gente vê encontrar-se ali e próximo e, no caso, de modo inacreditável; nomeio tal de: a pessoa Clarice; mas com o corpo literal-matéria-escrita-obra-arte-saber e voz secreta, ou seja, como o fantasma-bom-fantasma de Clarice, desde talvez os 15 anos até a minha morte, pois como ela disse, repito: também eu “estou falando do túmulo”; estamos no túmulo-Brasil, onde houve a glória Clarice.
[Um sonho: como era forte o calor, dormi despido; em um instante que não saberia dizer qual, entra no quarto mulher branca e alta e de olhos orientais; mas estou nu, eu digo puxando algo que me proteja daqueles olhos e daquela boca; ela não se senta, abre a janela; sobre o parapeito largo da casa debruça-se; tenho, moça, menos de dezassete anos, como escrevem os portugueses, e ainda sei pouco o que dizer ou fazer nu ou vestido diante de uma estrangeira imagem como a sua e bem aqui e junto demais; não quero morrer ainda, não quero morrer agora; não se pode morrer, Clarice (eu gritei o nome dela!), sem ter vivido alguma coisa forte ou rara, mesmo que seja em livros, como o fez dona Bovary; acordo em susto; Clarice no sonho perguntou não te pediram para escrever sobre nós e você somente sabe dormir; eu disse: cansei de ser seu cavalo, irei ali relinchar; acordei de novo; acordei com Clarice docemente a balançar um berço enquanto fumava distante distante distante; depois ela disse com severidade vá vestir-se, e escreva: obedeci].
Talvez tivesse eu uns quinze anos quando me deparei com algum texto escrito por uma certa Clarice Lispector; por mais que queira não consigo lembrar-me de qual texto: todos os textos de Clarice vão e voltam diferidos em modos de escrita vários (ela faz isso) e vão e voltam no escuro em mim e isso ainda insistentemente depois que colhi frases da obra total, no que resultaram dois livros; não sei se primeiramente o impacto de a ler ocorreu na escola ou em contato com ela-em-escrita, em alguma revista Senhor; nessa época, preciso dizer, já me julgava como tendo um destino de homem-que-escreve; aos nove, uns cem mil poemimhas em cem mil papeizinhos (Clarice escreveu sobre trilhões de) que me perseguiram até o facebook, minha atual gaveta-de-retalhos pública; pois então: li, chamemos assim, algo de Clarice que bombardeou minha ideia de escrita e minha ideia de como dizer algo sobre algo para alguém que não existe senão na necessidade de se criar alguém para ter a quem dizer algo, e algo que traga em si justamente aquilo que está fora do algo dito, pois o algo dito tem como meta ilusória preparar uma frase que se encharque de pensamento e de vida ou, como mais tarde quis chamar, apenas de pensamento pós-filosófico: Clarice é nossa pós-filósofa, e não há outra ou outro ainda, ainda não há; desde ali e adiante; a cada ida a ela-escrita, abalava-se toda minha ideia de sensação e de viver: sou de Clarice um invento, como se um trabalho de arte visual contemporânea por aí e por aqui me exponho.
Até encontrar Clarice-texto, àquela época lia todo Machado de Assis, a quem muito adoro; ele, Machado, consistia no ponto mais alto que se poderia atingir em arte da escrita, e consiste; li coisas outras de autores diversos e fui então de susto em susto e estarrecido conhecendo muitos outros textos dela, Clarice; como precisei de dinheiro (eu queria moedas minhas para libertar-me no campo do amar homens sem dívidas maiores com pais), cedo dei-me à docência; primeiramente aulas particulares de língua portuguesa, depois de literatura; posso dizer que literatura em certo sentido passou a ser sem cessar aulas para mim aulas de/com/por/sobre Clarice; tornou-se ela a móvel régua teórica do ‘para que serve escrever? para bem-existir’; os livros seus eram todos eles provenientes de minha máquina-de-aulas; entrei com eles para a Universidade onde conheci a mestra total, Diva Vasconcellos da Rocha; essa mulher eterna, professora de Teoria Literária, tinha seus pés em pensamentos filosóficos hermenêuticos em que reinava o Senhor Heidegger; disse-lhe eu, bem tolinho, que gostaria de entender o estruturalismo pois dele ouvia falar e somente em minha mestra Diva eu confiava; Diva decidiu por muito me amar dedicar-se ao método estutural, escolhendo uma obra de Clarice: esquecer jamais esqueço de Diva falando sobre Clarice com misturas de esquemas linguísticos e esquemas vivenciais: levam-me as duas mestras aos céus.
Clarice, eu vi com Diva, não somente intuía como dominava como poucos a literatura moderna em sentido ampliado do Brasil, assim como dominava de forma absoluta o sistema do fazer compositivo, era e é Clarice a dona da frase entendida e usada como matéria física do pensar a alma, a alma desde que saibamos o que guarda essa palavra; pensar a alma, pensar a graça.
Eis o primeiro ver a pessoa de Clarice: quatro alunos meus em curso de pré-vestibular, quatro alunos mais atevidos do que o professor, telefonaram para Clarice, que já se tinha tornado uma espécie raríssima de matéria-dispositivo-arma obrigatória em minhas aulas-vidas, como disse; depois de insistências, soube mais tarde, conseguiram o sim, o sim de Clarice para encontro em sua casa, e para aquela noite! Em desespero telefonaram-me e disseram que eu teria de acompanhá-los: eu era tão menino quanto os quatro meninos, e achava que aproximação com o que é forte demais exige obter mais créditos na ordem do sagrado; eu não queria ir, tive pavor do convite (tenho pavor de convites: um acontecimento a nos prender ao futuro!), por isso vi-me subindo às tontas, com eles, ao apartamento do Leme onde hoje habita a ardente Zezé Motta; nesse mesmo dia, creio sempre que, embora se conhecessem, antes jamais foram ali, seguiram conosco os, para nós, desconhecidos Affonso Romano de Sant’Anna e sua amada Marina Colasanti; esses dois escritores, Affonso e Marina, estavam apreensivos, mas conseguiam ser meigos e sorridentes para os meninos, uma inesperada companhia.
Abriu-se a porta; Clarice de pé não riu, encaminhou-se para o sofá, o cachorro Ulisses estava ali (sabíamos dele, do cachorro, e de muito da vida de Clarice por acompanharmos suas “crônicas” no Jornal do Brasil); não sei como batia meu coração se é que meu coração batia, a boca seca, como de costume seca; Clarice era de fato bela, altiva, doadora de alguma coisa que todos víamos que estava a nos ser doada; não havia assunto, eu creio; não me recordo se tomamos café ou água; eu, eu em hipnose, em respeitosa hipnose quietíssimo; Clarice não deu especial atenção a ninguém; a sala era simples, nenhum luxo e nenhuma coisa que nos chamasse para, embora bem se visse a tela com seu retrato feita por Chirico; o encontro, com mínimas falas e de que não bem me recordo, hoje em mim se move como se em um devaneio: sei com certeza apenas que, em bem pouco tempo de estada nossa naquela sala, Clarice bruscamente disse: “quero que vocês saiam, estou muito cansada”: saímos.
[Um sonho: a mesma mulher branca e alta e de olhos intensivos e de certo modo duros entra no quarto e diz-me: não gostei de seu jeito de narrar nosso começo corpóreo; levantei-me, ofereci-lhe um cigarro e com coragem respondi: “é que não tenho memória, tanto quanto você não gosto de casos e até de sensações esqueço tão logo infiltradas em algum ponto do corpo”; e disse eu ainda: “de mais a mais, eu olhei para você naquele dia mas você olhou para o longe: você, Clarice-pessoa, você gera elos que, com verdade-verdade, não podem ser grafados; “deixe então assim, vou fumar”, ela disse; respirei]
Em curso para escritores na PUC-Rio, Clarice (meu segundo cara a cara com o corpo dito pessoa de Clarice) apareceu a convite de Silviano Santiago e afirmou que tinha vindo para declarar que “se puderem, escapem todos vocês do escrever”; após a frase, senti como se sobre meus olhos ela tivesse posto imaginárias vendas; diante de Clarice, eu cego estou cego, estou cego; senti com o faro de um vendado que na sala os outros igualmente não a podiam ver (“ninguém vê o ovo”; “quem imitasse Cristo estaria perdido, perdido na luz”): muita luz-Clarice: não a víamos; preciso parar! Sei que Clarice tentaria outra porta, imaginaria um estado de proximidade entre duas pessoas que fosse inesquecível e cheio de tremores em algum instante de passagem, indo do comum ao extraordinário e voltando ao comum que nos acolhe quando em retorno de vida rasurada; todo esforço seu está em dar o abismo e dar o terreno humano; desculpe-me, Clarice: nem abismo, nem terreno posso oferecer, mas sim vida que não para, não para, estou cansado! Envelheci mais do que você e o que conta para que eu saia menos inquieto destas linhas é dizer que com você, Clarice, aprendi quase tudo, aprendi que (a) não nos devemos deixar devorar; (b) isso é exatamente isso e não adianta querer enfeitar o isso: a secura do isso nutre o isso; (c) abandonar é crime a ser punido, pois envolve desleixo existencial, mas desistir, desistir somente depois de se ter atravessado o deserto: desistir não se faz a qualquer hora e não é para qualquer um: desistir exige a ida a poderes sacros; (d) sejam dadas mil aleluias ao já; (e) não se pode ir a alguma coisa pensando no que já se viveu, tal gesto vem de fome pequena e histórica, tal gesto estraga a delícia do inaugural; (f) não se pode ir a alguma coisa pensando no que se vai fazer com a coisa no futuro: tal gesto nasce de uma esperança fraca, portanto é fraco; (g) precisamos com urgência da saúde do ato e (h) nessas horas de chumbo e fraqueza na pólis, saibamos exercer e ampliar toda nossa fabulosa e guerreira herança de forças de insurreição.
[Um sonho: eu vos decepciono, um senhor disse à senhora, aquela que tantas vezes frequentou o dentro do quarto; a senhora estava leve, falou que se “deveria utilizar a humildade como técnica”, e então os dois riram, pois no dito vive o mais, e o aquém].

ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS é doutor em Semiologia pela UFRJ, professor de Estética e de Teoria da Arte da UERJ e organizador de As palavras de Clarice Lispector (Rocco)

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